Ensaio sobre a cultura atual
março 16, 2016 § 2 Comentários
O acadêmico Allan Bloom publicou em 1987 um livro, impactante na época, chamado “The Closing of the American Mind”. Nele, criticava o relativismo moral promovido nas universidades norte-americanas, em que o subjetivismo pessoal havia substituído princípios morais universais. Apesar do palavreado bonito, a questão principal, segundo Bloom, era que não existia mais certo ou errado, dependia. Não era à toa que o estereótipo do yuppie havia se tornado o grande ícone social daquela época.
A tese promovida por Bloom, correta nos anos 80, não se aplica mais aos dias atuais – embora muitos acreditem o contrário (lembro que uma das “bandeiras” do papa anterior, Bento XVI, era exatamente a “luta” contra o relativismo). Não apenas campuses universitários, mas boa parte da sociedade, transborda julgamentos “morais”. Muitos escolhem cuidadosamente suas palavras com receio de “ferir” suscetibilidades e desencadear a “ira” de um exército de (nem tão) anônimos. O palco principal das “cruzadas” morais da atualidade não poderia ser outro, as redes sociais. Facebook e similares viraram “campos de batalha” de assuntos triviais à defesa de ideologias políticas e religiosas. A similaridade do “debate” é o radicalismo.
É inegável que uma nova forma de “sistema moral” entrou em vigor, com algum novo tipo (ou tipos) de critério(s) que define(m) o que é certo e errado. A questão principal que se coloca é que novo sistema moral é este?
O teólogo Andy Crouch, autor de livros de temática religiosa e editor do site “Christianity Today”, publicou um artigo em que se propõe a analisar este “sistema moral”. No texto, expõe as definições da antropóloga Ruth Benedict a respeito das chamadas “cultura da culpa” e “cultura da vergonha” (alguns atualmente chamam esta última de “cultura da humilhação”).
Segundo a Dra. Benedict na “cultura da culpa”, uma pessoa é boa ou má de acordo com a sua própria consciência – esta é inclusive a estratégia das religiões judaico-cristãs para “ensinar” conceitos de certo e errado (quem passou por colégios religiosos pode atestar – no meu caso, Lassalista). Na “cultura da vergonha” – ou “humilhação” – a pessoa é boa ou má de acordo com o que a comunidade diz a respeito dela, é celebrada ou excluída.
A quase onipresença das redes sociais criou uma espécie de nova “cultura da vergonha”, em que “aparência” conta mais do que “profundidade” e até mesmo “consistência”. O desejo de ser aceito e apreciado pela “comunidade” é intenso, levando à “construção” do aspecto moral baseado no continuum da inclusão e exclusão. O exemplo clássico – e talvez inicial desta cultura – é o da Monica Lewinsky, que publicou em 2014 na revista Vanity Fair um relato maduro e emocionante da sua experiência como “excluída” da comunidade. Relembrando, Monica era estagiária na Casa Branca quando se envolveu com o presidente Clinton, iniciando um escândalo político que quase o levou ao impeachment. Em dado momento foi referida pelo próprio presidente como “aquela mulher”.
A nova “cultura da vergonha” criou uma série de comportamentos online. O primeiro deles é a prática intergrupo de louvor e elogio mútuo. Para ser aceito no grupo é preciso celebrar seus componentes e ser celebrado de volta.
O segundo, é o empoderamento do próprio grupo, que constrói sua própria reputação por meio do “policiamento” e reprimenda dos integrantes que falham em seguir seus códigos. Aqueles que não se encaixam, sofrem ataques instantâneos à sua credibilidade.
O terceiro (e último) comportamento, é a ansiedade constante de que o próprio grupo seja denegrido. Isto gera suscetibilidades e exigência instantânea de respeito e reconhecimento. Qualquer piada humorística é vista como pecado capital e gera respostas intensas, muitas vezes violentas. Um comentário desfavorável, por mais leve que seja, é visto como uma ameaça à identidade do grupo. A “seriedade” é levada ao extremo, o que gera polarização. É o radicalismo que tanto se comenta.
A nova “cultura da vergonha” se difere visivelmente da tradicional, encontrada em alguns países asiáticos por exemplo, no seu oposto. Na cultura tradicional, o oposto da vergonha é a honradez. Agir de maneira honrada é a “garantia” de aceitação e admiração pela comunidade. Na nova cultura, o oposto é a celebridade – que não por acaso tem a sua raiz etimológica no termo celebrado (qualquer ligação com o primeiro comportamento, não é mera coincidência). Chamar a atenção, de todos os modos e por qualquer meio, é a “garantia” atual.
Um sistema “moral” baseado em inclusão e exclusão perpetua a insegurança. A falta de padrões permanentes permite seguir o fluxo da multidão, mas gera hipersensibilidade, hipereação e pânicos que estimulam seguir a maioria no estilo “estouro de boiada” (vide o linchamento da suposta sequestradora de crianças).
Em tempos como estes, o comportamento mais importante, na minha opinião, é a descoberta do “norte” ou “verdade” pessoal. É ter a consciência e a convicção do que é válido defender, mesmo sob risco de exclusão e impopularidade. Há alguns anos li o livro do historiador Michael Beschloss chamado “Presidential Courage”, em que narra a história de alguns presidentes norte-americanos que promoveram reformas, mesmo sob ataques pessoais e risco de perder eleições, porque as consideravam de extrema importância para o país no momento. Não é preciso ser presidente para demonstrar este tipo de coragem, mas é preciso saber o que importa de verdade.
Quebrando a mesa… de reunião(?)
março 11, 2016 § Deixe um comentário
Illustration by James Graham
Octavian Costache, um dos fundadores da start-up de compras Spring, costuma “tomar” a palavra nas reuniões semanais com todos os funcionários, promovidas na cozinha da empresa. Costache trabalhou durante anos na Google e é um dos criadores do Gmail e do Google Maps, portanto um “cara” que todos querem ouvir falar. Só de pigarrear, já chama a atenção na Spring. Foi o que fez em um dos encontros realizados em fevereiro último, queria falar sobre um assunto urgente: reunião.
Citando um artigo famoso de Paul Graham chamado “Maker’s Schedule, Manager’s Schedule”, apresentou o conceito que vinha “martelando” a sua cabeça. Segundo Graham, algumas pessoas “prosperam” em reuniões, e por isso necessitam de um calendário cheio delas, em horários e locais variados. Ele as chamou de “managers” (vou manter o termo original e não a tradução, gerentes, por uma questão de sintaxe). Mas uma empresa, em especial as baseadas em tecnologia (não por acaso, de onde Graham e Costache vieram), não é apenas formada por “managers”. Há aqueles cujo bem-estar pode ser “quebrado” por uma sala de conferências. Precisam de um tempo germinativo, muitas vezes solitário, para colocarem em prática a sua expertise. Graham as chamou de “makers”.
Para ilustrar a ideia, Costache colocou em um monitor um Google Calendar, com um mosaico colorido e tumultuado de afazeres, e o apresentou como “a semana ideal” de um “manager”. Em seguida, abriu um calendário novo, todo em branco, e o apresentou como o “paraíso” dos “makers”. Arrancou aplausos entusiasmados.
A verdade é que apenas as áreas de design de produto e de desenvolvimento, em uma empresa como a Spring, estão autorizadas a um calendário de “maker”. O restante precisa se equilibrar em videoconferências, ligações e encontros. A realidade coloca os verdadeiros “pingos nos is”. Como fazer então?
O próprio Paul Graham dá a dica. Quando perguntado se ainda apoiava as ideias contidas no “Maker’s Schedule, Manager’s Schedule”, saiu-se com um “claro que sim” – afinal foi ele quem escreveu o texto – mas acrescentou: “minha reunião ideal não tem mais do que 4 ou 5 participantes, que conhecem e confiam uns nos outros. Nada de powerpoint ou pessoas tentando impressionar umas às outras”. No texto anterior, escrevi um pouco sobre “QI coletivo” e como ele é estimulado em grupos que se comportam exatamente como na descrição da reunião de Graham.
Anos atrás, treinei durante alguns meses boxe. Não foi aonde me encontrei em termos de artes marciais – hoje pratico kung fu, que me proporciona momentos de incrível alegria – mas tenho uma dívida com a chamada “velha arte”. Existe duas coisas em comum entre o boxe e começar uma empresa que notei com o passar do tempo (vou chegar mais à frente no que isto tem “a ver” com reuniões). A primeira é que são atividades extremamente solitárias. Certamente se tem a ajuda de amigos, mentores e treinadores, mas quando a luta começa, é só você no “ringue”. O segundo, é que a “luta” propriamente dita tem pouco a ver como trabalho em si, é uma porção bem pequena do que se tem que fazer. O verdadeiro trabalho acontece quando ninguém está olhando: o treino, a preparação. Muitas vezes só nos damos conta quando estamos recebendo as pancadas.
Reuniões são como treinos. Em uma empresa, assim como no boxe, ter as pessoas certas auxiliando na preparação pode ser a diferença entre sair da “luta” só com um olho roxo ou direto para o hospital. Entendo a “reclamação” de Costache e Graham não como uma diatribe contra reunião, mas contra a perda de tempo. Se pudesse ser vendido no mercado financeiro, creio que “investir” em tempo daria o maior retorno de todos – dado o quão valioso ele é. É preciso critério para marcar, participar e até encerrar uma reunião. Ela precisa ser significativa, do contrário é inevitável a sensação de tempo perdido. Ser significativa, para mim, não implica necessariamente gerar algum plano ou decisão – mas contar efetivamente como um passo a mais (não necessariamente adiante) no processo de trabalho. Mesmo porque, como disse certa vez Mike Tyson – voltando à analogia do boxe – “todo mundo tem um plano até levar o primeiro soco na cara”.
Criar algo – e não se engane, esta é a razão de reuniões – está relacionado ao “caminho”, não ao “resultado final”. É o caminho que conduz a intenção. O que os “reformadores de reuniões” quase não abordam é que elas funcionam como “abrigos de mentes” e quando bem combinadas entre participantes, que sabem o que querem e respeitam as opiniões alheias, podem atuar como um “celeiro” de boas ideias. O caminho é o processo.
Para fechar, deixo como reflexão uma frase do grande treinador de boxe Cus D’Amato: “não importa o que se diga, não importa a desculpa ou a explicação dada, no final das contas, o que uma pessoa faz é o que ela queria fazer desde o início”.
Qual é o processo das suas reuniões?
O que equipes de sucesso têm de diferente
março 1, 2016 § 4 Comentários

Illustration by James Graham
Em 2008 um grupo de especialistas das instituições Carnegie Mellon, MIT e Union College iniciaram uma pesquisa para medir a “inteligência” de grupos, que chamaram de “QI coletivo”. Para isto recrutaram quase 700 pessoas, divididas em pequenos grupos aos quais distribuíram uma série de pequenas tarefas que requeriam diversas formas de colaboração. Eram atividades bem diferentes entre si, como pensar em novas aplicações para um tijolo ou fazer compras em conjunto em um supermercado com diferentes listas para cada membro.
O que mais chamou a atenção dos pesquisadores foi que os grupos que se saíram bem em alguma tarefa, também conseguiram bons resultados nas demais e os grupos que não foram bem em alguma, repetiram o mesmo resultado em todas elas. Ao focarem nos grupos que haviam se saído bem, perceberam que apesar de agirem de maneiras diferentes, possuíam duas características em comum.
A primeira era que todos os membros falavam na mesma proporção. Em alguns momentos, todos participavam igualitariamente, em outros a liderança mudava de mãos de acordo com a tarefa, mas no “final das contas” a quantidade de tempo que cada um havia “falado” era praticamente a mesma. Isto levou os pesquisadores a concluírem que quando todos os membros de um grupo tinham a chance de participar, o grupo ia bem. Quando uma pessoa ou um grupo restrito dominava, a inteligência coletiva caía. Esse fenômeno foi chamado de “igualdade na distribuição de turnos de conversação” (no original, “equality in distribution of conversional turn-taking”).
A segunda característica que todos os bons grupos possuíam era a “sensibilidade social” – um jeito chique de dizer que eram habilidosos em intuir como os outros membros se sentiam apenas pelo tom de voz, expressão facial e outras formas não-verbais de comunicação. Para medir esta habilidade, os pesquisadores utilizaram um teste chamado “reading the mind in the eyes” – algo como “lendo a mente pelos olhos” – que consiste em mostrar fotos de olhos de pessoas e pedir para descreverem o que aquelas pessoas estavam pensando ou sentindo. Os bons grupos pontuaram acima da média neste teste – em contraste, os grupos que não foram bem nas tarefas pontuaram abaixo da média. Estes grupos (os mal avaliados) aparentaram ter uma baixa sensitividade em relação aos próprios membros.
Antes de continuar, gostaria de propor uma questão. Se você tivesse que contratar uma das duas equipes a seguir, qual delas escolheria?
Equipe A: composta por pessoas extremamente inteligentes e de sucesso comprovado. São profissionais que aguardam aparecer um tópico que dominam e então o explicam detalhadamente e indicam o que a equipe deve fazer em relação a isto. Quando algum dos integrantes faz um comentário não pertinente ao tópico, é lembrado da agenda da reunião e do assunto que estão debatendo. É uma equipe eficiente, que não perde tempo com conversinhas e longas discussões. As reuniões acabam invariavelmente na hora e cada um volta imediatamente aos seus afazeres.
Equipe B: composta por algumas pessoas de sucesso, algumas medianas e outras com poucas realizações profissionais. Pulam e voltam aos assuntos sem muito direcionamento. Vários falam ao mesmo tempo e algumas vezes completam as frases uns dos outros. Quando alguém muda de tópico, invariavelmente os outros seguem a sugestão e não é raro abandonarem a agenda. As reuniões não têm um final, as pessoas simplesmente param de tratar dos assuntos em questão para falar da vida pessoal ou fofocar.
A equipe A é certamente o “sonho” de qualquer gestor, mas sugiro fortemente que prestem atenção no que diz a professora de Harvard, Amy Edmondson, no artigo “Psychological Safety and Learning Behavior in Work Teams”, publicado no já longínquo ano de 1999. Trocando em miúdos, “Segurança Psicológica” pode ser descrita como o “clima” de confiança e respeito mútuo da equipe que permite com que as pessoas estejam confortáveis para serem elas mesmas. Isto gera um senso de autoconfiança em cada membro de que não será rejeitado, humilhado ou punido por dizer o que pensa. Amy Edmondson também é autora de um livro que costumo recomendar para todos que estejam interessados em atuar na “economia do conhecimento”, chamado “Teaming”.
Apesar de ser uma equipe séria, em que todos estão interessados em “dar o seu melhor” e cujos membros têm um alto grau de eficiência individual, a equipe A desencoraja “igualdade” no falar; permite pouca interação pessoal, que faz com que seus membros não tenham condição de “pescar” sentimentos ou “coisas” não ditas; e há uma grande chance deles continuarem agindo individualmente mesmo estando em grupo. Ao longo do tempo, é pouco provável que essa equipe desenvolva um alto grau de “QI coletivo” – traduzindo, dificilmente vai gerar propriedade intelectual ou inovação.
A equipe B, apesar de parecer errática, com seus membros falando ao mesmo tempo, saindo pela tangente em discussões e socializando quando deveriam estar trabalhando, não é tão ineficiente quanto aparenta. Ao permitir que seus membros falem tanto quanto achem necessário e que criem sensibilidade para perceber os humores e sentimentos uns dos outros, está sedimentando as bases da “Segurança Psicológica” e da criação de elos interpessoais. Em médio e longo prazo, apesar de não possuir muitas “estrelas”, a equipe B se tornará mais inteligente coletivamente do que a equipe A – e na “economia do conhecimento”, ao fim e ao cabo é isto que importa. Porque é isto que gera dinheiro.
Sei que para muitos pode parecer uma insanidade permitir que funcione em um ambiente corporativo um processo como o da equipe B. Sei também que para 99% dos gestores com poder de decisão, a equipe que seria contratada para qualquer projeto seria a A. O exemplo muitas vezes é o melhor incentivo para a mudança de comportamento, então aí vai um. Uma “pequena” empresa da Califórnia tem gastado os “tubos” financiando pesquisas como a da professora Edmondson e contratando equipes B. Talvez você conheça, chama-se Google.