Inteligência Artificial, essa incompreendida
setembro 21, 2016 § 3 Comentários
Em um texto anterior comentei a respeito do “Estudo de 100 anos para a Inteligência Artificial” e fiz uma pequena introdução do primeiro relatório produzido pelo painel de especialistas. Também terminei o texto convidando o leitor a compartilhar as suas impressões. Muito dos feedbacks que recebi giraram em torno do que afinal é IA (o título, inclusive, foi sugestão de um dos leitores). Não me refiro ao conceito popular, dos filmes – que invariavelmente a apresenta como ex-machina (que explicarei rapidamente ao final do texto) – mas o seu conceito “acadêmico”. Minha intenção é tentar explicá-lo neste texto e nos próximos, abordar com mais detalhes as tendências da Inteligência Artificial e os impactos nas áreas do “emprego e ambiente de trabalho” e “educação”.
Conhecer do que se trata o campo da Inteligência Artificial ajuda a “jogar luz” em um tema que para muitos ainda é ficção científica (embora já seja mais realidade do que nunca) e ajuda a tornar mais real as oportunidades – e as possibilidades de ruptura – que irão influenciar a nossa sociedade.
Em primeiro lugar, é preciso entender porque este assunto vem sendo tratado com tanta importância. Existe uma mudança de modelo econômico em curso no mundo. Desde a primeira revolução industrial, nossa sociedade vem se organizando (sim, os modelos econômicos determinam a forma como a sociedade é) com base em um modelo mental fundamentado em processo de manufatura. É inegável que o modelo industrial estimulou o desenvolvimento tecnológico, social e cultural dos últimos três séculos e modificou a forma como pensamos e enxergamos nosso lugar no mundo. Mas também sedimentou na nossa cabeça, o conceito de que fazemos parte de um processo industrial que tem começo, meio e fim – estudamos, trabalhamos e aposentamos; recebemos estudo fundamental, médio e superior; trabalhamos produzindo insumos, produtos manufaturados ou serviços agregados; namoramos, casamos e temos filhos – os exemplos são inúmeros, a similaridade deles está no seu modelo de processo por etapas.
Embora o modelo industrial esteja em “nosso sangue”, o que possibilitou as revoluções industriais – pelo menos na sociedade ocidental – foram os conceitos iluministas de produção de conhecimento (e que levaram à mudança social máxima da sociedade contemporânea: a separação de Igreja e Estado). A produção do conhecimento, neste estágio, atuou como produto de base da indústria – era encarado como um insumo ou recurso para o fim maior: a produção industrial.
Esta lógica vem se modificando há pelo menos 25 anos. A produção do conhecimento vem deixando de ser um acessório do modelo econômico para se tornar a razão do próprio modelo econômico (talvez o maior exemplo da margem de lucro permitida pela produção do conhecimento seja a Apple com o IPhone – gastou algumas dezenas de milhões de dólares no seu desenvolvimento e faturou em retorno bilhões das “verdinhas” americanas). Cada vez mais, a capacidade de produção de propriedade intelectual vem se tornando a habilidade principal desejada por empresas e o que determina que selecionem alguns candidatos e não outros (isto vem inclusive modificando o processo seletivo em algumas áreas – um exemplo é o processo seletivo da empresa The Information Lab, que paga uma bolsa para os candidatos participarem de um curso de 4 meses e fecha contrato com os que mostrarem as melhores performances quanto à capacidade de produção de propriedade intelectual). É claro que esta é ainda uma realidade distante do Brasil, mas em algum momento teremos que nos inserir neste contexto sob o risco de ficarmos muito (mas muito) para trás.
Desta forma, estamos passando de um modelo econômico focado em produção manufatureira para outro baseado em produção de propriedade intelectual. E a Inteligência Artificial é o diamante desta coroa – afinal ela congrega o que pode vir a ser a própria definição do trabalho do futuro: alta capacidade de cognição humana sendo potencializada pela alta capacidade de cognição artificial.
Quanto à elucidação que prometi, a verdade é que não há uma definição precisa e universalmente aceita para Inteligência Artificial. Curiosamente, foi exatamente por falta desta definição que o campo de estudos floresceu. Ainda assim, uma definição é importante e o professor de ciência da computação, Nils J. Nilsson (Nilsson, Nils J. “The Quest for Artificial Intelligence: A History of Ideas and Achievements”. Cambridge University Press, 2010) fornece uma útil: “a inteligência artificial é a atividade dedicada a fazer máquinas inteligentes. Inteligência é a qualidade que permite que uma entidade possa funcionar de forma adequada e com clarividência no seu ambiente”.
Desta perspectiva, caracterizar IA depende muito do que o ser-humano está disposto a considerar “funcionamento adequado” e “clarividência” em se tratando de hardwares e softwares. Uma simples calculadora eletrônica faz cálculos muito mais rápidos do que o cérebro humano e com muito menos erro. Uma calculadora eletrônica é inteligente? Para responder, precisamos deixar de lado o nosso modelo mental industrial e entender inteligência em um espectro multidimensional (isto quer dizer que há mais do que um tipo de inteligência – vide Howard Gardner).
De acordo com esta visão, a diferença entre uma calculadora eletrônica e um cérebro humano não é de espécie, mas de escala, velocidade, grau de autonomia e generalidade. Estes mesmos fatores podem ser usados para avaliar qualquer instância de inteligência (obviamente, o que o ser-humano considera como inteligência), seja ela natural, artificial (e quem sabe um dia, extraterrestre) e posicioná-la adequadamente dentro do espectro. Softwares de reconhecimento de voz, de geoposicionamento, de controle de navegação de veículos, de termostatos, de jogos go-play (tipo Pokemon) – dentre outros – têm sua inteligência avaliada da mesma forma como a inteligência humana o é. Aprendizagem de máquinas (o machine learning), por exemplo, é avaliada da mesma maneira como é a capacidade cognitiva humana: pela taxinomia de Bloom.
Notavelmente, a caracterização de inteligência como um espectro não concede nenhum status especial ao cérebro humano. Mas é preciso reconhecer que até o presente momento, a inteligência humana não tem correspondência na biologia e nos mundos artificiais em relação à sua pura versatilidade e habilidade para “raciocinar, alcançar objetivos, compreender e gerar linguagem, perceber e responder a estímulos sensoriais, provar teoremas matemáticos, jogar jogos desafiadores, sintetizar e resumir informações, criar arte e música, e até mesmo escrever histórias” (novamente utilizo as palavras do Nilsson).
O grande desafio que uma definição de Inteligência Artificial encontra para se sedimentar na sabedoria popular, é a eterna perda da reivindicação em relação às suas conquistas. Este é um padrão que constantemente se repete desde que o campo surgiu (também conhecido como “efeito IA” ou “paradoxo estranho”). Ocorre da seguinte forma, IA traz à tona uma nova tecnologia, as pessoas se acostumam a esta tecnologia, ela deixa de ser considerada Inteligência Artificial e um novo “mercado” surge. Talvez seja por esta razão que a ideia de IA no imaginário popular esteja relacionada ao conceito de ex-machina. Ex-machina é o santo graal da Inteligência Artificial, o seu objetivo máximo. Criar uma forma de inteligência que se aproxime tanto, mas tanto da inteligência humana, que tenhamos de parar de considerá-la máquina e classificá-la como alguma outra coisa.
Inteligência Artificial e os próximos 100 anos
setembro 8, 2016 § 4 Comentários
Em 2014 foi lançado o “Estudo de 100 anos para a Inteligência Artificial”, por uma espécie de consórcio formado por universidades de ponta dos EUA, Canadá e Índia e pelos departamentos de pesquisa de empresas de tecnologia. Para “tocar o trabalho” foram formados um comitê administrativo para cuidar da organização e gerenciamento do estudo (afinal a ideia é que dure pelo menos 100 anos) e um painel de especialistas destinados a analisar o que tem sido feito na área e tentar prever os caminhos e os impactos da Inteligência Artificial no futuro da humanidade.
Há poucos dias foi liberado o primeiro relatório produzido pelo estudo, com os potenciais avanços que se têm pela frente e os desafios e as oportunidades que esses avanços trazem para os campos da ética, economia, tecnologia, ciências sociais e da cognição humana (mais sobre o projeto, pode ser encontrado no site criado pela Universidade de Stanford).
Sei que a primeira pergunta que provavelmente vem à mente é “o que isto tem a ver com a gente”? Bom, levando em consideração como o campo da IA vem se desenvolvendo nos últimos 70 anos – desde a publicação do texto “Computing Machinery and Intelligence” pelo matemático Alan Turing – e pelas perspectivas que traz para campos como transporte, saúde, educação e relações sociais e humanas (em especial o impacto no emprego e locais de trabalho), ter pelo menos uma indicação do que pode vir por aí é uma excelente ferramenta para ajudar na definição de políticas públicas e estratégias de ações dos próprios indivíduos no sentido de se adequarem à uma realidade que tende a ser bem diferente da atual.
Duas áreas em especial me chamam a atenção, “emprego e ambiente de trabalho” e “educação” (principalmente a última). Abordá-las na íntegra em um texto é impossível, portanto pretendo dar uma pequena introdução neste e comentar mais detalhadamente em textos futuros.
No quesito emprego e ambiente de trabalho, IA tende a substituir certos tipos de ocupações que envolvam controles repetitivos ou tarefas de rotina, por conta do impacto esperado em outras áreas – como por exemplo a relação transportes e condução de veículos automotores. Espera-se que as máquinas substituam as pessoas mais nas tarefas do que nos empregos propriamente ditos. No entanto, crescendo o espectro de tarefas que os sistemas digitais podem fazer e com a evolução dos sistemas de Inteligência Artificial, é possível que também cresça o escopo do que é considerado “de rotina”. Não se descarta a hipótese de se incluir serviços profissionais que historicamente não são realizados por máquinas. Desta forma, é possível que seja necessário pensar em “redes de segurança” sociais que protejam as pessoas de impactos muito profundos na economia, em um movimento muito parecido com o que ocorreu entre as décadas de 30 e 50 do século passado.
O impacto em educação tende a envolver uma dose de interação mais fluida entre máquinas e humanos. Embora seja consenso de que educação em alto nível envolva necessariamente relações humanas, com a de “mestre” e “aprendiz” – o que faz com que a profissão de “professor” seja uma das menos “ameaçadas” por sistemas digitais – ela é, simultaneamente, uma das que possuem maior possibilidade de ser “impactada” pelo uso de “máquinas” no seu “ambiente de trabalho”, principalmente pela possibilidade de “escalabilidade” da personalização. Tutoriais conduzidos por máquinas já são usados para ensinar alunos em áreas como matemática e programação. Máquinas com capacidade de processar linguagem natural (e não codificada), alinhadas com algoritmos de machine learning, têm impulsionado cursos que envolvem a aprendizagem formal e a autoaprendizagem integradas e professores com habilidade de “multiplicar” o tamanho de suas salas de aula, ao mesmo tempo que tem capacidade de abordar simultaneamente as necessidades de aprendizagem e os estilos individuais dos estudantes. Os responsáveis por isto são os sistemas de aprendizados online e os learning analytics (que usam dados coletados dos próprios sistemas online para analisar a performance e a evolução dos alunos e oferecer insights).
As tendências na área de machine learning (o aprendizado de máquinas, que se tornou uma das bases da Inteligência Artificial) é um bom indicativo do que pode vir por aí. Termos como deep learning, aprendizado de larga escala de máquinas (large-scale machine learning), visão do computador (computer vision) e aprendizado por reforço (reinforcement learning) devem se tornar mais comuns e populares a exemplo de data analytics e big data (que também são usados para instigar o desenvolvimento da Inteligência Artificial). Este tópico, aliás, é um bom começo para entender o que vem por aí. Mas este já é um assunto para um próximo “papo”. Por enquanto, convido a quem quiser, que compartilhe seus pensamentos, medos ou esperanças em relação ao que foi comentado até o momento. Sei que esse tipo de assunto, ao mesmo tempo em que é fascinante, é controverso. Portanto ter ideia de como é entendido pelos que me leem, me ajudará no desenvolvimento da abordagem dos próximos textos.
Inteligência Digital
setembro 1, 2016 § Deixe um comentário
Não é segredo que temos passado cada vez mais tempo na companhia de aparelhos digitais, seja profissionalmente ou como entretenimento. Para evitar simplificações, vou utilizar a definição dada pelo departamento de ciência computacional e da informação do Brooklyn College para o tipo de equipamento – “é o conjunto de aparelhos que convertem informações em números e permitem seu armazenamento, transporte e compartilhamento”. Estamos “falando” de smartphones, computadores e tablets – mas também de tecnologias mais “antigas” como telégrafo, calculadora, relógio de pulso ou telefone fixo.
Este é um fato que transcende faixa etária. Crianças, por exemplo, passam em média, sete horas diárias em frente a alguma tela digital – segundo artigo da Academia Americana de Pediatria. Para efeito de comparação, é mais tempo do que passam na escola ou em companhia dos pais. Mais do que isto, existe ainda a lacuna – chamada de gap geracional digital – em relação à percepção e uso da tecnologia digital. Crianças e adultos a percebem de forma diferente e esta diferença é hoje o maior “desafio” enfrentado por pais e educadores em relação ao que é apropriado fazer em termos de “educação digital” e mesmo em torno do que é considerado um comportamento aceitável no mundo online.
Alguns conceitos têm surgido para ajudar no entendimento desta realidade. Alguns deles têm saído da academia para assumir a forma de propostas e iniciativas que efetivamente contribuam para a educação dos seres-humanos do século XXI. Uma delas, envolve o conceito de Inteligência Digital e da sua métrica proposta, chamada de coeficiente de inteligência digital.
Inteligência Digital é o conjunto de habilidades sociais, emocionais e cognitivas que permitem aos indivíduos desenvolverem a capacidade necessária para enfrentar os desafios e se adaptar às exigências da vida digital. Essas habilidades podem ser genericamente divididas em oito áreas interligadas. Minha intenção é apresentar rapidamente cada uma delas.
Identidade digital, é a capacidade que um indivíduo tem de criar e gerenciar a sua identidade e reputação digital. Isto inclui a consciência a respeito da sua persona online e a gestão do impacto, em curto e longo prazo, da sua presença na internet.
Uso digital, é a capacidade de usar aparelhos e suportes digitais, incluindo a habilidade de encontrar um equilíbrio saudável entre a vida online e offline. Vale reforçar que este equilíbrio é individual – cada um define o seu – embora as consequências de extrapolá-lo possam ser percebidas de maneira coletiva, como por exemplo, distúrbios psicológicos.
Segurança digital, é a capacidade de “gerenciar” os riscos online, por exemplo, cyberbullying, aliciamento, catfishing (para quem não está familiarizado com a definição, catfish corresponde à pessoa que assume uma falsa identidade na internet), bem como lidar com conteúdos “problemáticos” (como violência e obscenidade). Em resumo, é a habilidade para evitar ou limitar esses riscos.
Proteção digital, é a capacidade de detectar ameaças virtuais (como pirataria, fraudes, malware), entender as melhores práticas de utilização dos conteúdos disponibilizados (conceitos como o de curadoria digital, por exemplo) e do uso das ferramentas de segurança adequadas à proteção de dados.
Inteligência emocional digital, é a capacidade de ser compreensivo e construir boas relações com os outros online.
Comunicação digital, é a capacidade de se comunicar e colaborar com outras pessoas, usando tecnologias digitais e de mídia.
Alfabetização digital, é a capacidade de encontrar, avaliar, utilizar, compartilhar e criar conteúdo digital (novamente envolvendo o conceito de curadoria), bem como a competência em programação computacional e raciocínio lógico, além do desenvolvimento do pensamento crítico.
Direitos digitais, é a capacidade de compreender e defender os direitos pessoais e coletivos, nomeadamente os direitos à privacidade, propriedade intelectual, liberdade de expressão e proteção contra discursos de ódio.
Bom, se prestarmos bem atenção, veremos que a raiz da Inteligência Digital são os valores bem humanos do respeito, empatia, prudência e cidadania – desejáveis em qualquer sociedade. Quem se interessar e quiser implementar o modelo, sugiro a plataforma digital izhero.net, até 31 de dezembro a adesão a ela é gratuita.
Quem se interessar em explorar conceitualmente o assunto, sugiro procurar a seguinte bibliografia.
Barlett, C. P., Gentile, D. A., & Chew, C. (2014). Predicting cyber-bullying from anonymity. Psychology of Popular Media Culture.
Gentile, D. A. (2013). Catharsis and media violence: A conceptual analysis. Societies, 3, 491–510;
Gentile, D. A., Choo, H., Liau, A., Sim, T., Li, D., Fung, D., & Khoo, A. (2011). Pathological video game use among youth: A two-year longitudinal study. Pediatrics, 127, e319-329.
Gentile, D. A., Reimer, R. A., Nathanson, A. I., Walsh, D. A., & Eisenmann, J. C. (2014). A prospective study of the protective effects of parental monitoring of children’s media use. JAMAPediatrics, 168, 479-484 doi:10.1001/jamapediatrics. 2014.146
Maheshwari, Anil. (214). Data Analytics Made Accessible.
Maier, J. A., Gentile, D. A., Vogel, D., & Kaplan, S. (2014). Media influences on self-stigma of seeking psychological services: The importance of media portrayals and person perception. Psychology of Popular Media Culture.
Mithas, Sunil. (2012). Digital Intelligence: What Every Smart Manager Must Have for Success in an Information Age. Finerplanet.
Ostrov, J., Gentile, D. A., & Mullins, A. D. (2013). Evaluating the effect of educational media exposure on aggression in early childhood. Journal of Applied Developmental Psychology, 34, 38-44.
Prot, S. & Gentile, D. A. (2014). Applying risk and resilience models to predicting the effects of media violence on development. Advances in Child Development and Behavior, 46, 215-244.